sexta-feira, 27 de abril de 2012

Baseado ligeiramente em fatos reais.

Zeca não falava espanhol. Em sua concepção, a língua portuguesa e a espanhola eram tão próxima que era uma perda de tempo e de dinheiro. Com um pouquinho de boa vontade, qualquer um desses povos latinos conseguiam se entender. Ao menos era isso que ele dizia a si mesmo. Na verdade, ele guardava um certo preconceito com os "hermanos" do seu continente. Aquela coisinha que todos temos, do tipo mudar de lado da rua se um nordestino está vindo no sentido oposto, ou quando recebemos uma fechada no trânsito, berramos: "Tinha de ser mulher!".

Falando em Mulher, haviam duas mulheres ativas na vida de Zeca: A esposa e a irmã. Os três tinham boas condições financeiras, e não raramente viajavam pelo Brasil e quiçá pelo mundo. Zeca tinha orgulho de seu inglês impecável e sempre buscava ir aos EUA. A irmã e a esposa não falavam inglês tão bem, mas falavam outras línguas completamente alienígenas ao protagonista... E mais o espanhol, aquela "perda de tempo e dinheiro". Por isso, elas tinham alguma inclinação a visitar países não tão distantes.

 Assim, em um ano eles foram para o Paraguai em busca de eletrônicos, outra vez ao chile, pelos Andes. Um ano, foram ao México, mas Zeca conseguiu converter em uma esticada a Miami e Orlando, mesmo os três teoricamente velhos demais para a Disney. Mas um sonho da esposa e irmã de Zeca sempre foi esquiar em Bariloche.

 Se Zeca inconscientemente torcia o nariz para os países da língua espanhola inconscientemente, quando se falava da Argentina, um pouco da consciência dele estava envolvida. Ele tinha em seu próprio conceito de argentino um babaca estereotipado que falava aquela língua enrolada. Mas seus gostos pela Europa e EUA já haviam predominado a maioria de vezes. Zeca batia o pé, mas não tinha a mesma força do ano anterior, em que foram para Roma. Sua esposa decidiu então um compromisso:

- Iremos à califórnia este ano. Mas a passagem é mais barata partindo de Buenos Aires Nós vamos dois dias antes, conhecemos a capital argentina, e de lá, a Califórnia.

 Zeca não estava muito satisfeito, mas os benefícios econômicos e o destino final o agradava. Valia a pena aquele tremendo sacrifício de conhecer a Argentina. Assim, passaportes em mãos, partiu o trio.

 Chegando em Buenos Aires, Zeca descobriu o porquê da insistência pela nação vizinha: A irmã de Zeca fez amizade online com "Ruan". Juan - para quem prefere escrever corretamente - era um imponente loiro argentino, com fazendas e um hotel em Buenos Aires. Era um grande esteriótipo da arrogância aos olhos tupiniquins de Zeca: Ligeiramente bem-sucedido, privilegiado na aparência e estatura, e argentino. E agora, queria "pegar a sua irmã"!

 O agora quarteto saiu na primeira manhã para fazer os pontos turísticos mais batidos. A Casa Rosada, o Palacio de la Moneda, Miraflores, Puerto Madero, e coisa e tal. Zeca passava por "turista caladão", quando em seu íntimo menosprezava o que via. Tanto por seus sentimentos prévios como pela presença do animado e sorridente "Ruan". - "Ele não fala espanhol direito", justificava a esposa ao anfitrião, que em clima de viagem seque desconfiava do que ocorria no íntimo do marido.

 Enfim, chegou o momento das compras das "garotas". A esposa e a irmã de Zeca marcham no interior de uma galeria para olhar, provar e comprar lembranças e roupas. Elas comparariam cores, projetariam climas para usar, e num turbilhão de centenas de peças, elas começariam a chamar os "rapazes" para comprar algo mais. Homens costumam a ser práticos e decisivos nas compras, mas seriam obrigados a calçar, botar e vestir absolutamente tudo naquele lugar. Considerando isso, a companhia de "Ruan" do lado de fora do estabelecimento era, por incrível que pareça, preferível.

 Então, aquele "climão" começou. "Ruan", com sorriso estampado, acenando positivamente e encarando hora a rua, hora Zeca. O Brasileiro, com um sorriso amarelo, acenos mais lentos, e com um "si, si", sempre que o argentino falava algo. Ruan estava entendendo tudo, já que língua portuguesa e a espanhola eram tão próxima que era uma perda de tempo e de dinheiro. Mas nem sempre isso ajudava no assunto.

 Sempre que algo passava na rua, para quebrar o gelo, um dos dois comentava algo.

- "Olhea" - falava em portunhol o Brasileiro. - Uno Carro del Chile!

- Si, se puede manejar desde aqui a Santiago pelos Andes.

- Si, si, si!

"Manejar"? - estranha o Brasileiro.

 Mas assim que o carro ia, o assunto morria. E passava a ser uma velha gorda vendendo guarda-chuvas / Paráguas, ou como a rua era limpa e etc. Os minutos viravam uma hora, e nada das moças retornarem de suas compras. A paciência de Zeca esvaziava, mais ainda porque em nenhum momento aquele "amigável sorriso" deixava o rosto de "Ruan".

 Enfim, buscando um assunto, Zeca percebe um ônibus jardineira colorido, cheio de crianças com uniformes de um colégio.

- Mira! - puxa o assunto o brasileiro, após se lembrar que não é "Olhea". - Uno autobus com muthos Perros!

- Perros? - ri "Ruan".

- Si! Perros... "pequenhos"! - insiste.

- Ahahaha... Não se dice "perros". "perro" es "cachorro".

- “Caxiorro”?!? - estranha o brasileiro. - E como se diz... Aquilo alí? - aponta para as crianças.

- Se dice "Niños"

- Ninhos. - balança a cabeça Zeca. - Perdon. É que é mutho parecido com "perro" na minha língua.

 "Ruan" Sorri. E tal como muitos assuntos, morreu quando o ônibus se foi. Mas "Ruan" ficou matutando algum tempo. Entendia português - não muito, mas comparado ao que Zeca sabia de espanhol, podia entrar na academia brasileira de letras. Não se lembrava de palavras similares a "perro" serem usadas em português. Aquele adendo no vocabulário lhe interessava.

- Entonce... No Brasil, "crianças" se dicen algo similar a "perros"?

- "Perros" mesmo. Que nem la "pronuncía".

- Nunca ouvi que "crianças" seria "Perros" em português.

- Ah, não todas. "Solamiente criancias”como aquelas!

 Tudo ficava claro a "Ruan". Era um falso cognato ou uma expressão regionalista mais singular, e por isso não a ouvira antes.

- Que se... Habla de ninõs en "excursão"?

- Non.

- Que se... Que tipo de niños enton?

Zeca repara que finalmente sua irmã e esposa chegavam, com os pacotes e o carro. Teria uma última frase antes de partirem.

- "Ninhos" nascidos en "la Arrentina".