terça-feira, 20 de novembro de 2012

O Quarto Assombrado

O Capitão Afrânio Gusmão já havia visto horrores de sua profissão, em ambos os lados da lei. Mas nada como o cômodo da sua nova casa.

Era um estúdio do antigo morador, um colega que ele matou...


Luiz Donato Fagundes foi o motivo de seu descaminho. Então um tenente da polícia militar daquele estado, apresentou ao colega desiludido com a violência e o malquisto salário de protetor da segurança pública com o canto da sereia da máfia. E depois, passou a enganar a máfia. Donato era inteligente... Conseguiu manter seus esquemas por anos, e isso deu considerável fortuna a ele e a seu guardião Gusmão.

Mas o exemplo de Donato atiçou Gusmão. Ele logo aprendeu as manhas do empreendimento, e ainda conquistou respeito e confiança tanto da Força quanto da Coisa Nossa. Algo que o estratégico colega mostrava-se incapaz. Então, com um infeliz assassinato no "cumprimento do dever", Luiz Donato Fagundes faleceu.

Fagundes não teve esposa e filhos reconhecidos. Era esperto demais para isso, e Gusmão cuidou para que isso ocorresse. A família ficou com os bens óbvios. Os ocultos, somente Gusmão sabia quais eram. Com algumas notas em uma mão e o calibre 38 na outra, os laranjas entregaram o espólio ao comparsa sobrevivente.

Afrânio tinha esposa e uma filha. Por etiqueta social, a jovem Isabela foi batizada e o "tio donato" foi o padrinho. Agora, a família de três mudava-se para o casarão Fagundes.

A construção à beira do rio era enorme. Projetada pessoalmente pelo Donato, em uma zona próxima à cidade, mas não muito. Era á beira do rio, em zona de proteção ambiental que jamais era fiscalizada. Tinha um estábulo com três cavalos manga-larga, gato de água, gaz e luz; saneamento melhor do que muitos bairros nobres da cidade. A suíte de casal era gigantesca. Não só a cama ampliada para as orgias regulares, sistema de som, jacuzzi e um balcão projetado para cima do rio, sistema de som individualizado, closet maior que muitos apartamentos da cidade. Fora esse, mais quatro quartos consideráveis, três outros menores, e o Estúdio.

"Estúdio" porque era onde o finado Donato mantinha sua papelada. Era sua sala de pensar, com as paredes forradas de portinholas dos armários embutidos, quadros para desbaratinar o clima, tapetes persas ao chão e fazendo as vezes das cortinas, que quando fechados podiam mergulhar o quarto em uma sombra tenebrosa.

Também tinha, dentro de um armário maior na extremidade oposta à porta, o sistema de segurança. Havia uma sala para os seguranças, mas todos os monitores eram espelhados naqueles, com luzes verde. A luz era tão intensa que suplantava a lâmpada regular do quarto, combinando com a escuridão das janelas acortinadas e os odores de cigarros e charutos diversos consumidos por Fagundes ao longo dos anos.

Não era um cômodo amplo. A mesa alta e brega de carvalho ocupava a totalidade do espaço. Alguns diziam que Só assim Donato sentia-se seguro... Pobre tolo.

E então, os boatos de que era assombrado.

A diarista jurava que as cortinas fechavam-se sozinhas. De vez em quando, os papéis voavam para fora das mãos de quem passava à frente da porta. Várias vezes, as portinholas baixas - quase à altura do chão - abriam-se de repente e atingiam Gusmão ou a esposa - Ângela - na canela. Ferimentos sérios. Chegava a sangrar.

Sons eram ouvidos madrugada adentro. Desde arrastar de móveis a resmungos lamuriosos.

Mas uma noite, Isabela não estava em seu quarto. Era noite alta. Aquilo incomodou a princípio... Mas o incômodo tornou-se medo ao averiguar os primeiros cômodos e não achar a pequena, que tinha sete anos à época. E então, veio o irracional pavor. Todos os cômodos foram revirados, mas nada. Ela não estava na área da churrasqueira, no estábulo, na piscina, em nenhum dos vários quartos, ou na suíte luxuosa. nem na cozinha.

Inconscientemente, o estúdio do Donato foi o último lugar a checarem.

E lá estava ela. Dormia bem enrolada no edredom, com um travesseiro. Usava a enorme mesa de carvalho como cama. Parecia em paz... Alheia graças à espessura da porta e das cortinas à gritaria que seu sumiço provocava.

Até que o pai berrou.

Como aquela ingrata dá um susto desses na mãe? O que estava fazendo naquele quarto desagradável? Como ela ousara?

Numa explosão de ódio incompreensível aos seres de boa índole - muito mais á pequena alternando entre a consciência e o sono, lançou um tapa no rosto dela. Tapa que a acordou completamente, emendando um chorro de angústia e desespero. Um berro infantil que atraiu a mãe.

E outra coisa.

O punho daquele covarde ergueu-se novamente. Mas não foi desferido. A mesa de carvalho, com seus 150 quilos, parecia ganhar vida e arrastou-se pelo carpete, projetando Afrânio para trás. Indefeso, o proprietário chocou-se com violência entre dois armários embutidos.

Aqueles armários estavam com a porta aberta. Madeira de lei, forte e vigorosa. A fechar-se repetidamente sobre Afrânio, ainda imprensado pela mesa. O rosto do bandido vertia sangue. Estava abalado demais para sequer reagir.

Ângela estava pasmada por longos segundos, e então postou-se a tentar afastar a mesa. Sequer pensava nas portas a mover-se sozinhas. Sua força, combinada à do marido, libertaram-no lentamente. Isabela, aos prantos, deixava o quarto.

Instantes antes de se libertar, o armário na extremidade oposta se abriu de supetão. A luz verde dos monitores - que deveriam estar desligados ha dias - inundaram aquele lugar com uma aura sobrenatural. Algo profano.

Com um impulso final, Afrânio afasta o suficiente a mesa de carvalho e salta por cima dela. Rola para longe do castigo do armário da parede lateral. Uma vez livre, ele salta para a liberdade, tão rápido, que deixa a esposa para trás.

Os tapetes persas que faziam vezes de cortinas voaram, projetados por vento invisível. Era um tecido grosso que arranhava com sua lã trançada em movimento de chicote, mas não o suficiente para deter o fugitivo. Ele projeta-se pela porta do cômodo, e escorrega caindo, deslisando pelo corredor de acesso, só parando ao esbarrar no corrimão da escada ascendente.

Mas um som fixou-se em sua alma. Um berro, imediatamente depois de uma batida seca.

Ângela tentou sair do quarto também, mas quando pensava estar livre, a porta bateu. Seu braço ainda fazia a transição. Ela estava caída, com o braço entre o vão e a porta. A pele arroxeou quase instantaneamente. A dor era imensurável.

Aqueles sons infernais despertaram os dois seguranças, a babá e a empregada fixa. Eles apareceram para ver o que estava acontecendo. Pouco depois o rapaz que cuidava do estábulo e manutenção do casarão apareceu também, mas já estavam terminando os trâmites. Aos olhos dos primeiros, estavam os patrões visivelmente feridos, a marca de mão no rosto da Isabela... E mais nada.

Afrânio nem se lembra quem guiou-os à urgência hospitalar mais próxima. O braço de Ângela era o mais grave. O casal não trocava palavras até eles serem chamados. Tinham o plano de saúde da polícia. O atendimento era preferencial.

Mas a enfermeira, ao observar a natureza dos ferimentos, suspeitou de algo. Pediu para o capitão Gusmão aguardar na sala de espera enquanto atendia a esposa. Estranhou a separação... Imaginou que seria pelo tratamento diferenciado a homens e mulheres.

Soube depois que houve fratura no braço da esposa, pelo assistente social plantonista.

Correu no hospital suspeita de violência doméstica, e Ângela foi obrigada a fazer exame de corpo de delito. Afrânio protestou e tentou fazer valer suas divisas, mas nada adiantou. E para piorar, nenhum dos dois poderia falar do quarto assombrado.

A história que os dois combinaram era de que Afrânio caiu da mesa ao subir para trocar uma lâmpada, uma perna cedeu, e ele esbarrou violentamente na porta, imprensando o braço da esposa. Era o melhor que conseguiram, e havia muitas lacunas na versão. A delegacia de proteção á mulher não era subornável muito menos intimidável. Aquele processo seria complicado para sanar...

... E não era a maior preocupação do casal.

Só na tarde do dia seguinte os dois voltaram à casa. Foram direto para o quarto proibido. A violência da noite anterior chegou a provocar rachaduras no compensado das paredes em volta da porta, mas fora isso, nada parecia estar fora da ordem. A mesa estava no centro. Os tapetes, no lugar. Os monitores desligados, e funcionando regularmente. Os funcionários da casa estavam certos que tratava-se de uma briga, e não de intervenção sobrenatural, mesmo com os boatos do quarto assombrado.

Alguns até sussurravam alucinações decorrentes de drogas mais fortes que o casal consumia.

Gusmão estava dividido. Não era religioso, e era melhor passar por maluco que batia na esposa do que pinel que surta. Seus imóveis na cidade ou estavam alugados ou não possuíam casa construídas. Teriam que passar, ao menos aquela semana, ou na casa ou em um hotel.

A contra-gosto de Ângela, Gusmão decidiu não mostrar fraqueza Se aquilo saísse do âmbito familiar, poderia ser sinal de fraqueza aos seus contatos e concorrentes. Sua vida estaria em risco.

Mesmo não acreditando, o quarto assombrado era ainda um lugar de medo. Ventania espalhando a correspondência, a porta abrindo e fechando aparentemente sozinha e com as janelas fechadas... Tudo consideravelmente aumentado. Mas Isabela parecia não se importar. Nenhum dos "fenômenos" ocorreu em sua presença.

Gusmão sabia o que viu, mas os papos enlouquecidos dos funcionários eram tão descabidos e diferentes de sua própria experiência que não dava crédito. E por isso, passou a não dar crédito em suas próprias memórias. Talvez Isabela tivesse empurrado a mesa quando ele correu para cima dela. Talvez na confusão Ângela fechou a porta no próprio braço - ela já fechou a porta do carro na ponta dos dedos uma vez.

Ele legitimamente caminhava ao ceticismo quanto ao que achava que viu. Especialmente quando era obrigado a desmentir a si mesmo nas audiências na delegacia de grupos vulneráveis - sim, o tapa em Isabela só complicou sua situação. Claro, com Ângela do seu lado, esperava que o assunto não fosse para a frente.

Até que recebeu uma carta. Não tinha remetente, mas tinha um selo antigo. Identificou a agência dos correios do carimbo - era a da avenida das Flores, a mesma que ele e sua secretária usava. O envelope era até familiar.

Só tinha uma nota lá dentro. Parecia ter sido escrito por um semi-analfabeto, garranchos de caneta de tinta verde, difíceis de ler. Mas conseguiu decifrar a mensagem:

"Sabia que Ângela já dormiu com Donato?"

Aquele envelope, algo estranho nele. Era de papel vermelho escuro. O que aquilo queria dizer?

O sangue do capitão ferveu. Ele rumou para seu quarto... A luxuosa suíte nunca mais usada com festa desde o incidente do quarto assombrado. Ângela era uma mulher bela e voluptuosa, trabalhada pelos genes favorecidos e pelo Dr. Silva e Lopes, cirurgião de estrelas globais. Mas parecia uma mulher alquebrada, muito além do gesso azul no antebraço.

- Ângela, o que você sabe disto aqui?!? - resmungou, e jogou o bilhete na cama, onde ela podia ver.

Ela estava estranhando a recepção abrupta. Pensou em pegar o bilhete para ler, mas com a face escrita para cima, ela nem chegou a apanhá-lo para saber o conteúdo. Sua mão encolheu, como se tentasse ignorar sua existência faria com que ele deixasse de existir.

Uma confissão velada quase que assinada e registrada no cartório.

A mão espalmada de Afrânio agitou-se na direção do rosto de Ângela. Com uma reação rápida, ela aparou com o braço são, mas a violência foi tanta que a projetou para traz, fazendo-a cair da cama. O capitão esticou-se por um momento, mas estava fora do alcance. Numa reação predatória, ele levantou-se e contornou com passos firmes na direção de onde a esposa havia caído.

- Afrânio pelamordedeus! - protestava em prantos copiosos a esposa. - O processo! Pense no Processo, Afrânio!

Gusmão empurra a cama violentamente para o lado, derrubando a mesa de cabeceira e o abajur de seu lado. Foi o tempo dos apelos da esposa chegarem a ser ouvidos. Ainda corria o maldito processo pela agressão do quarto assombrado. Novos ferimentos desmoronariam a defesa do "acidente bizarro". O racional e o explosivo e violento emocional se neutralizaram, e por alguns segundos, o capitão ficou sem saber o que fazer, sem saber o que falar.

Seu âmago despertou com a chegada de Marquito, o segurança. Negro gordo e alto, com ar ameaçador. Depois dos boatos que o quarto assombrado ganhava vida, o curioso e limitado capanga aprendeu a se apressar quando acontecia baderna. Acabou flagrando o casal em vias-de-fato, desacreditando ainda mais a lenda.

Afrânio agarrou o bilhete da cama, juntou com o envelope, com os dentes trincados em fúria e frustração, e encaminhou-se ao segurança.

- Eu quero que descubra ... Quem foi que mandou esta carta pelo correio! Não importa como. Só... Descubra!

- Mas ... Mas fui deu, dotô! - reagiu ingenuamente e naturalmente o golias.

Outro homem, um menor e desarmado, teria sido esmurrado na cara. Mas mesmo com a lealdade de Marquito, seu vulto avantajado manteve o chefe na ombridade ante a vontade de agredir.

- Vamos ficar calmos... E pense bem no que você vai me dizer... - falou Gusmão. - Você está me dizendo que escreveu esta carta?!?

- Não, dotô. - corrige. - Eu estou dizendo que em quem mandou a carta!

- Por que você mandou esta carta?

- Ué? Eu faço isso com todas as cartas! Toda manhã pelo as cartas na sua mesa, nas da secretária, e levo para o correio. Lembro dessa aí porque tava sem remetente. Nem era o primeiro que postei da correspondência da casa...

"Correspondência da casa"... Meditou Gusmão. E ele lembrou. Lembrou por que era tão familiar.

Sem uma única palavra, caminhou ao quarto assombrado.

Girou a maçaneta. O quarto deveria estar trancado, mas não estava.

Ele abre a porta. O quarto parecia impecável. Tapete arrumado, mesa centrada, armários fechados. Ninguém entra no quarto desde que os patrões voltaram do hospital no dia da agressão.

A mesa... a maldita mesa... Afrânio hesita em entrar, e aproxima-se cauteloso da mesa. Era uma mobília fina, de mogno. Em alto-relevo, era esculpida o porta-canetas e diversos cases profissionais.

Gusmão pega uma das três canetas. Sua tinta era verde. Verde como o do garrancho.

Na case para envelopes... Um envelope vermelho-escuro. Idêntico ao da mensagem anônima.

Em sua mente, ouviu uma gargalhada. Marquito, que seguiu o patrão, não chegou a entrar no quarto proibido nem a ouvir a gargalhada, mas um arrepio sobrenatural correu sua espinha e ouriçou todos os pelos do seu corpo.

Os dois deixaram o quarto apressadamente. A porta bateu... Sozinha.

- Marquito... Quantos desses envelopes você mandou?

- Sei lá, Dotô... - protesta. - Já falei que de vez em quando vinha um vento do quarto e derrubava o envelope, não falei?

Como não vira antes? Ninguém é tão estabanado. Algumas correspondências não podiam ser rastreáveis, então fazia por correio ou por cartas entregues em mãos. Marquito juntava tudo, de contas de luz a chantagens. Desde sempre o "vento" espalhava os papéis nas mesas ou mesmo nas mãos do segurança/entregador.

No dia seguinte, houve uma nova carta. No mesmo envelope, mas a letra estava ligeiramente melhor. Dizia: "Achou o livro-caixa do Donato?"

"Livro-caixa"? Nunca soube de nada parecido. Mas Donato era organizado a ponto de ter algo assim. Não era recomendável, pois seria provas contra ele. Provas contra os dois. Contra pelo menos três grandes chefões que eles encobriam e tratavam de negócios.

Ângela, abalada, tentou ir para um hotel. Gusmão não permitiu... Mas não estava estourado como na noite anterior. Ela então confessou.

Estava virada de bêbada, e estava apaixonada pela casa. Sabia que em breve o marido daria um golpe e quis ver melhor a propriedade, e tendo um "affair" era a forma mais segura de ter acesso a tudo. Afirmava que jamais teve sentimentos envolvidos - como se isso importasse para um homem. Ângela achou que suas lágrimas, juras e devoção conquistaram a paz com o marido, quando na verdade o pensamento de um "livro-caixa" estava rodando na mente de Afrânio.

Porque se tais documentos existissem, estaria muito provavelmente no quarto assombrado. Independente de haver "algo mais" lá ou não, com tantos armários - ignorando compartimentos secretos - seria lá que Donato esconderia.

Afrânio decidiu que não iria ser visto na rua. Se o maldito documento foi ao longo dos dois anos em que morava na casa do Donato juntado para ser mandado para a máfia, para o Ministério público ou para "sei mais quem", estaria muito exposto na rua. Preferiu esperar alguma outra correspondência. Podia ainda ser só um chantagista. E com um homem de carne, ele poderia lidar.

Chegou Marquito com o correio. Mas nada. Nenhum envelope vermelho. Fez ligações para seus contatos - também herdados de Donato - para alertar se algo acontecesse. Eles estranharam, mas disseram que iam verificar.

Mas chegou um envelope.

Afrânio quase pisou nele enquanto desligava o telefone. Estava no primeiro degrau da escada ascendente. A mesma cujo acesso é no extremo oposto ao quarto assombrado de Donato.

Trêmulo, o capitão apanhou-o. Olhou ao redor... Poderia ter corrido por baixo da porta até aqui? Só ele estava naquele setor da casa... Só quem conhece a rotina da casa saberia que ele estava sozinho naquele setor.

Ou era um chantagista dentre os funcionários... ou...

- D... Donato?!?

A questão tímida foi feita na direção do quarto. Obviamente não houve resposta.

Afrânio abriu o envelope. A letra tinha similares à caligrafia dos primeiros, mas era muito melhor. A mão não tremia mais. O traço era firme. A tinta ainda era verde.

A mensagem: "Assoalho solto no pé da mesa. Defenda a sua família".

Seria alguma armadilha? Se ele entrasse no quarto assombrado, estaria sozinho. Um agressor o teria onde queria... Seja ele um fantasma ou um homem de carne.

Não tinha como Donato ter sobrevivido. Trinta tiros, sete na cabeça. Corpo incinerado com pneus. Arrancou os dentes do crânio para não ser identificado! Gusmão acompanhou cada um desses passos!

Gusmão passou o resto do dia na suíte, abraçado com Ângela. Seis da tarde, Isabela chegou da creche. O telefone toca.

Era Michel. Infiltrado no MP. Com a estranha ligação do novo chefe, ele foi fazer uma pesquisa abrangente nos processos sigilosos da corregedoria, e acabou esbarrando em uma delação premiada do Salvatore, um chefão italiano. Normalmente, ele iria atrás do Gusmão se tivesse problemas com a lei. E jamais entraria no programa da delação premiada se não estivesse sabendo de algo muito ruim. Não teve acesso ao processo principal, o que indicava que mesmo o próprio Michel estava na lupa de alguma grande operação.

O conselho de Michel era: "Saia do pais agora!".

Seria efetivo se tivesse ligado algumas horas antes. Provavelmente Michel ligou quando já estava no aeroporto... Ou mesmo de dentro do avião.

A cabeça enevoou com a perspectiva de algo tão grande no MP e que Salvatore estava tomando providências por conta própria não tivesse passado por seus braços longos até ser tarde demais. Mandou Ângela recolher algumas roupas - o mínimo - e foi buscar Isabela.

Não a achou no quarto.

Ouviu tiros.

Nem sequer cogitou qualquer outra coisa... Foi na direção do quarto proibido... do quarto assombrado. Sua carreira chamou a atenção de Ângela, que temendo o pior, seguiu.

Isabela não estava no quarto proibido... Ainda. Estava parada na frente dele. Segurava um envelope. A visão do pai reativou a memória do tapa de alguns dias antes, e ela ficou imóvel.

Gusmão nem pensava nisso. Só queria saber do envelope. Tomou com certa rudeza e leu-o.

"Agora é tarde demais.

Isabela é inocente. Ajude-me a protegê-la.

Assoalho no pé da mesa. AGORA!"

Novamente tiros. De cantos distintos da casa. Gusmão apanhou a filha e fez algo que jamais imaginou-se fazendo antes... Entrou de livre e espontânea vontade no Quarto Assombrado.

Ângela tentou voltar, mas ouvia berros na escada. Marquito gritava "estão aqui dentro!" Sem opção, seguiu o marido.

O minúsculo quarto. A mesa ocupando quase tudo. Os tapetes fechavam as janelas.

A Mesa é arrastada por uma força invisível. mais suavemente do que no primeiro fenômeno. O tapete debaixo dela se desenrola. O assoalho que ficou oculto por tantos anos é revelado. Em especial, uma tábua proeminente que subia quando o peso da mesa foi aliviado.

Era uma sofisticada obra de marcenaria. A tábua destrancava um compartimento secreto. Nele algumas granadas, uma AK 47 empoeirada, muita munição, e alguns livros. Uma brochura pequena destacava-se: Dizia na capa: "livro-caixa". Suas folhas pareciam ter sido arrancadas.

A capa grossa não poderia entrar nos envelopes... Mas as páginas sim.

Ângela e Isabela ignoravam o significado daquilo... Mas para Afrânio era claro: Matar ou morrer.

A Mesa movia-se mais uma vez. Desta vez. as pernas deixavam o chão. Não havia mais como esconder o sobrenatural, mas mesmo aquele supremo ato não conseguia imputar mais medo na família. Não mais do que o que ocorria além das portas.

A mesa de carvalho cai de lado, com as pernas voltadas para a família. Era uma sólida barricada improvisada. As portas fecham-se subitamente. Trancas são ouvidas. E enfim, o estalo de um disjuntor oculto é ouvido.

A casa, a propriedade inteira mergulha na escuridão, exceto as telas verdes do monitor atrás dos de Afrânio. Donato projetou aquele quarto como um quarto do pânico. Uma última defesa. Ele tinha controle das comunicações e da energia de todo o complexo. Via todas as câmeras, mesmo desativando as do segurança. As câmeras de visão noturna...

... E ainda tinha o fantasma a seu lado.

Via Marquito e Teco mortos na escadaria em uma das telas. Dois carros parados além dos portões derrubados. Viam dois homens estranhos subindo para a suíte, quatro abatidos por Marquito e o colega antes de sucumbirem, e mais três chegando ao quarto assombrado.

Um deles ele reconheceu. Salvatore.

As portas são testadas, e resistem. Forçadas com um golpe breve do ombro, e nem sequer abalam-se. Gusmão apanha a AK e apoia-a na mesa.

Salvatore recua. Seus dois capangas pegam distância para um golpe definitivo. Mas sem que ninguém esperasse, as portas abrem-se de supetão. Gusmão tem tiro livre nos bandidos desguarnecidos. Os dois caem alvejados múltiplas vezes. Salvatore tenta aproximar-se do vão, mas a porta se fecha. Tiros são deflagrados, mas morrem na porta.

Gusmão estava mais esperançoso. Poderia matar um a um. Tinha a imagem, tinha o elemento surpresa. Só restavam Salvatore e os dois que foram à suíte, e agora desciam em seu auxílio. Eles tinham a ilusão de que Gusmão estava encurralado, enquanto ele e o Fantasma prepararam uma armadilha mortal.

Era Donato, seu companheiro. Só podia ser. Ia levar os malditos italianos à ponta de sua arma. Eles iriam sobreviver àquela noite!

Ângela berrava irracionalmente. Mas o confiante capitão achou que era desvaneio irracional de mulher. Homens de verdade estavam prontos para matar ou morrer. Iriam vencer aqueles três desgraçados. Depois, iriam atrás dos parentes de Salvatore. Todos eles!

Mas Ângela não berrava por isso. Ela só não conseguia colocar em palavras. Precisou agarrar o marido com sua única mão boa para que percebesse Isabela.

Ela flutuava, como se gentilmente erguida por um homem invisível. Uma cortina afastava-se, revelando uma janela estreita. Isabela já estava do lado de fora do quarto quando Gusmão começava a entender o que ocorria. Mas aquilo era melhor, não era? A filha ficar longe do tiroteio.

- Gusmão, Chega! - ouvia uma voz. O forte sotaque de Salvatore. - Vamos conversar!

Pelo vídeo, via que o chefão guardava a arma, mas seus capangas ficavam na lateral do vão.

Ele saca algo do paletó. O ângulo da câmera e a luz verde impediam de identificar pela câmera. Mas o som era fácil de reconhecer... O som das trancas da porta soltando-se.

- Sábia decisão. - fala Salvatore, sem saber que a porta estava se destrancando sozinha. Ângela e Gusmão se abraçam atrás da mesa de carvalho.

A porta se abre lentamente. O vulto do chefão italiano surgia na luz verde dos monitores. Salvatore tomava ciência do que acontecia naquele lugar, e percebe quanto Afrânio e Ângela estavam longe da porta. Em sua mão, um envelope. O mesmo que o levou até a casa do Donato naquela fatídica noite.

Do compartimento secreto onde estava a arma, os pinos das granadas voam.

O quarto era pequeno e abafado. Era vigoroso para se tornar um quarto do Pânico. E comprimido, o ar dele tornava a explosão das granadas muito mais letais do que seriam.

Em uma explosão de fogo, fumaça e detritos, morreram Salvatore, um dos capangas, e o casal Gusmão. O capanga sobrevivente perderia uma das pernas e estava inconsciente.

EPÍLOGO

Como já disse Shakespeare, "há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha conhecer a vã filosofia". O que poderia explicar a permanência do espírito de Donato na terra após seu assassinato?

Sua teimosia e genialidade permitiram que ele descobrisse um modo? Ou sua fúria vingativa ante a traição dos Gusmão inibia seu derradeiro descanso? Ou seria movido pelo pensamento de salvar a pobre e inocente Isabela de seus pais violentos e abusivos?

Um espírito é invisível para os vivos. Atravessa paredes e ouve à distância, mas não consegue tocar em nada. Mas o Quarto Assombrado, onde por dias a fio Luiz Donato passou pensando na vida ou travando seus intrincados planos de superar o status quo, ele conseguia. Teria resquícios psíquicos ou emocionais sido os responsáveis? Jamais saberemos. O fato é que o Quarto Assombrado era o único lugar que ele poderia minimamente afetar o mundo físico.

Por meses, ele aprendeu os segredos dos Gusmão. Urrou de dor ao confirmar a traição. De Ângela que prometera o amor e fugir de Afrânio... Que lhe deu uma filha. E o que dizer de seu primeiro parceiro? Seu amigo e pupilo que por pura ganância o matou e se assenhorou até mesmo de sua casa?

Levou meses até que pudesse mover a caneta. Meses coordenando a rotina da casa. Até conseguir mandar a primeira carta-teste denunciando a infidelidade da esposa. Era preciso sacrifício hercúleo para destacar as páginas do livro-caixa, várias vezes flagrados pelos funcionários.

Mas quando Afrânio espancou Isabela, o pai secreto aflorou. A mesa não era mais adversária. As portas dos armários. Mesmo algo mais sutil como ligar os monitores. Como Donato imaginou, era tudo questão de saber direcionar sua fúria. Ele praticamente gargalhou quando viu Ângela deixar o braço exposto no vão da porta. Queria decepar aquela vadia... Mas quebrá-lo valeu.

Afrânio deveria cair. Cair por completo. Não só pelos olhos da máfia, mas pela sociedade. As folhas do Livro-caixa foram separados em dois envelopes igualmente incriminadores. Um, para corregedores que sabia não serem vendidos como Michel. Outro, para Salvatore, que iria cruzar linhas que o poder público hesitaria.

Mas o maldito italiano irracional quase colocou a vingança a perder. Não só expôs-se na corregedoria como vigiava a casa. Era óbvio a alguém mais atento que os capangas dele estavam mapeando a casa... Para isso as câmeras. Mas o debilmente do Marquito não percebeu. Mesmo com o aviso, o cretino do Afrânio não toma atitude proativa. Que se exploda ele e a vaca da Ângela, mas Isabela estava em perigo com o ataque de Salvatore.

Do quarto assombrado, ele poderia controlar tudo. Não havia limites para sua força. Bastava posicionar os peões onde ele queria. Sabia que o dedo de Afrânio no gatilho o deixaria hipnotizado no tiroteio. Poderia tirar Isabela do quarto pela janela mais alta, e deixar que todos explodissem com o quarto, a casa, e tudo o mais.

O rapaz dos estábulos recebeu um envelope com instruções detalhadas. Instruções de aguardar fora da propriedade para ir recolher a criança nos fundos da casa. Instruções de onde encontraria outro envelope, com a carta de guarda da jovem herdeira, e direito de manipular os cinquenta milhões de reais que ela valeria até sua maioridade.

E principalmente, o aviso do que aconteceria com ele se levantasse a mão para Isabela a qualquer momento de sua vida.

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