sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Ligação para Carla

Quem me conhece sabe que eu sou do tipo que guardo rancor. Por isso, hoje de manhã fui forçado a rever o primeiro telefonema que recebi em 2008. Um telefonema para Carla.

"Quem é Carla", você pergunta? Alguém que possui uma amiga sem-noção em Recife.

Isso é tudo o que eu posso dizer sobre essa pessoa.

1º de Janeiro de 2008. 06:00 da manhã... ao menos em meu celular que é uns 3 minutos adiantado para bater com o relógio de ponto do trabalho, mas digamos 06:00. Não sou o tipo festeiro, mas era o primeiro dia do ano! Obviamente fiquei acordado para a festa da virada. Todos na cultura judaico-cristã com mais de 8 anos de idade e menos de 80 fazem isso. O dia 1º é feriado exatamente para isso!

Pois bem... 06:00 am... Meu celular toca. Eu deixo meu celular longe da cama em fins-de-semana ou dias que pretenda passar descansando para não ficar angustiado olhando para seu visor e vendo a hora... Mas desta vez me foi fatal. Com pouco mais de 2 horas de sono no dia inteiro e depois de beber e pular o Reveillon, precisei me levantar e com a urgência de um ♪"ding-ding-dililing"♫ para atendê-lo.

No espaço de menos de um segundo (entre um ♪"ding-ding-dililing"♫ e outro) eu faço uma análise no visor.

- 06:00 da manhã de 1º de janeiro. É o equivalente a 04:00 da manhã de qualquer outro dia. Deveria ser importante...

- Prefixo de Recife. Não reconheço esse número, e não conheço ninguém de Recife/PB. Mas como é feriadão poderia ser algum familiar viajando. Recife não tem horário de verão, então são 06:00 lá também... Vai ver Pernambuco adotou o ano novo chinês lá... Para essa incômoda pessoa a me ligar deveria ser uma terça-feira e eu já estaria escovando os dentes para ir para o trabalho.

E enfim, quando o celular ameaça fazer o primeiro ♪"ding" de outra série de ♪"ding-ding-dililing"♫, eu atendo.

Não que a conversa tenha sido longa... Mas foi três vezes maior do que deveria ser. No mundo ideal ela seria assim:

- Alô? - digo eu.

- Por favor, Carla está? - fala uma senhora do outro lado.

- Acho que a senhora ligou para o número errado. - retruco.

- Oh. Desculpe.

(FIM).

Particularmente, eu dispensaria o "desculpe". São 2 segundos a mais que eu passaria na cama tentando recuperar o sono ou lembrar do sonho que eu estava tendo antes de ser abruptamente acordado. Estaria com raiva da amiga da Carla que sem ter nada melhor o que fazer em Recife no primeiro dia do ano, decide acordar ela... E acaba antes ME acordando. Mas ficaria por isso mesmo.

... Mas não foi o que aconteceu.

♪"ding-ding-dililing"♫ o telefone toca. Eu salto da cama sonolento no segundo ♪"ding-ding-dililing"♫ e vou até a mesa, levando um terceiro ♪"ding-ding-dililing"♫ para perfazer o percurso. Analiso as horas e a origem da chamada. Fico consternado. Começo a sentir que outro ♪"ding-ding-dililing"♫ chegava e então o interrompo atendendo ao celular.

- Alô? - digo eu.

- Oi Carla! - fala uma senhora do outro lado com certa animação.

Não que eu tenha a voz do Cid Moreira, mas será que dá para confundir com o de uma mulher? Vai ver a Carla é da família Gusmão ou é cantora da MPB... E de onde essa senhora consegue animação para falar tão festivamente às 06:00 da manhã de 1º de janeiro?

- Aqui não é Carla não. - falo eu.

Confesso que engrossei um pouco a voz.

- Poderia me chamar a Carla, por favor? - fala ela, ainda com o mesmo pique.

...

Okey, culpa minha. Eu poderia ter dito "não tem Carla nenhuma aqui". Minha resposta deu a entender que poderia haver uma Carla na casa.

- Acho que a senhora ligou para o número errado. - retruco.

- Não é do celular da Carla Não?

...

Okey, vou admitir uma pequena parcela de culpa aqui. O "Acho" não transmitiu a certeza e a consternação que eu realmente tinha ao dialogar com a senhora. Porque será que a gente fala "acho que a senhora ligou para o número errado" como se fosse uma fora mais educada? Talvez por dar uma brecha para SER o número certo dê a impressão que há uma possibilidade da pessoa que ligou não ter errado miseravelmente na missão de digitar 8 dígitos?

Bem, 13 neste caso. Ela é de recife, discou 0 + Operadora + DDD

"Não é do Celular da Carla Não?" Bem, note o "da"... De+a. "a" é Artigo Definido. Logo, subentende-se que "Carla" é alguém conhecida, e que seu prenome bastaria para que eu pudesse verificar se eu teria atendido seu celular. Isso eu analiso às 06:00 da manhã de 1º de janeiro... Mas um "A senhora ligou para o número errado" foi duro demais para nossa amiga Pernambucana.

- Não, minha senhora. É o meu Celular. - respondo.

- Pois eu podia jurar que liguei ****-**** (número omitido)

Deu uma vontade de dizer "estou tão consternado quanto a senhora. Vai ver a OI quer nos pregar uma grande peça cruzando linhas aleatórias e eu dei o azar de pegar a amiga da Carla que não percebeu que o ano virou e nós aqui em Sergipe dormimos".

Talvez não tão elaborado, mas seria mais ou menos isso que sairia. Mas minha educação falou mais alto... (eu estava com sono, lembram?) e o que saiu foi um...

- Não minha senhora. Este é o Meu Celular.

- Não é Carla não?

...

Que revelação. 20 e tantos anos de vida achando que eu era Leonardo, um rapaz de cromossomo XY quando na verdade eu era Carla! Uma moça que não dorme depois do Reveillon e que tem uma amiga em Pernambuco!

Caramba! Entre eu saber quem eu sou e a senhora de Recife digitar 13 dígitos num celular, EU ser o que cometeu o engano... Vai ver ela é uma elfa e está surpresa por ter cometido um erro, já que "Errar é humano". Como poderia ela se equivocar digitando os números? É mais provável que eu esteja equivocado quanto a minha identidade e meu gênero.

Bem, não descarei que seja obra da OI. Mas bem que a operadora poderia fazer isso no dia 1º de abril, e não na manhã de 1º de janeiro.

Ah, bem. Dessa vez eu bocejo bem forte para tentar dar uma sutil dica para a nossa intrusa de Recife.

- Não, minha senhora. Não tem ninguém com o nome de Carla aqui.

Avalio um pouco. Não deixei margem para dúvidas desta vez. Espero não ter sido rude...

- Tem certeza?!? - insiste ela.

... Eu deveria ter sido rude.

- Tenho.

Falo secamente. Vai ver minhas respostas compostas animam a senhora a insistir nessa filosófica conversa. Desta vez já acordado tinha uma resposta caso essa senil senhora pedisse para eu dizer que número era. Ou seria algo como “Não no primeiro encontro”, ou seria um extrato resumido deste texto... Ou então simplesmente abriria meu dicionário de sinônimos de “meretriz acéfala” e didaticamente ditaria para aquela senhora. Sorte que ela não fez isso.

A senhora faz uma pausa. 3 ou 4 segundos... Parece pouco para vocês, que lêem esta obra/desabafo, mas para alguém com um celular colado à orelha 06:01 da manhã de 1º de janeiro é uma vida élfica. Dos elfos do Tolkien, Dead.

- Ah, tá bom. Obrigado. - fala ela enfim. E então o doce som do telefone sendo desligado do outro lado da linha, no distante estado de Pernambuco. Enfim, o suplício acabou.

Desligo o Celular - eu seria o menos indicado para uma emergência dentre meus amigos e/ou familiares mesmo - fecho as cortinas e me deito.

Lembra quando eu falei no começo que em uma situação normal de "número errado" não faria questão do "desculpe"? Essa senhora que tanto me ocupou teria o que desculpar-se. Ela já tinha me acordado numa manhã de 1º de janeiro... Mas ao invés disso, ela diz "obrigado".

Porque ela diria "obrigado"? Eu fiz um favor para ela de ficar na linha até não sobrar margem de dúvida de que eu não era nem conhecia Carla? Ou ela estava atrás dos créditos para ligações interestaduais da forma mais danosa ao alheio possível? (novamente, culpa da OI)... Ou ela acreditou mesmo na velha expressão "Aracaju é um ovo"? Vai ver ela nem tem o celular da Carla (talvez por esse estranho hábito de ligar às 06:00 da manhã de 1º de janeiro) e ligou 0 + operadora + DDD de Sergipe + um número qualquer na esperança de ouvir um "Carla? Não. Ela mora no fim da rua. Aguarde na linha que eu vou chamar ela".

"Obrigado". Hump. Aquilo me deixou de orelha em pé até voltar a dormir.

Hoje, quinta feira, 03 de Janeiro de 2008. O episódio me vem à memória. 06:00 e eu estou escovando os dentes no meu banheiro, ponderando se faço a barba ou se deixo para quando voltar do trabalho, e ♪"ding-ding-dililing"♫ meu celular toca.

Adivinha quem era?

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