segunda-feira, 17 de março de 2014

Dungeon World - O Vale da Morte

*Inspirado em um dos talentos de bárbaro do sistema Dungeon World.

Frio.

Mas um frio bom. Um frio familiar.
Ymoso levanta-se devagar, com os olhos (olhos?) acostumando-se com a pouca luminosidade. Não era a escuridão... Era algo como o fim de tarde com nuvens carregadas. Lembrava-se de sentir dores, mas com o frio tomando conta de seu corpo, as dores iam esmaecendo.

Havia algo alem da gravidade (gravidade?) que dificultou levemente o ato de se levantar. O som característico das “Dedos da Terra” largando tecido, couro e pele. “Dedos-da-terra” é uma graminha espessa e escura, cuja folha adere-se ao pelo e a pele dos animais quando pisada. Muito nutritiva, sua presença indica que animais silvestres devem estar próximos, pois era a mais rica fonte de pasto nas Montanhas. Era um bom presságio aos caçadores das Montanhas da Neblina encontrá-las.
“Dedos da Terra” davam exatamente a sensação de que a terra tentou segurar seus pés. Não tinham força para atrasar um homem em marcha, mas dava muito sustos em peregrinos na noite que sentem a primeira resistência de suas botas a caminhar.

Isso significava que Ymoso estava de volta às Montanhas da Neblina? Como chegara lá?


Seus passos produziam barulho discreto. Normalmente evitaria, pois deveria estar numa potencial zona de caça. Mas não estava caçando (ou estava?). Não sentia fome... Nem cansaço. Só o frio e a dor, que diminuía.
Ele caminhava numa estreita estepe verdejante entre dois paredões de pedra nua, com os sinais claros do vento desgastando-a. Parecia estar “em casa”. Numa região segura e promissora. Sentia-se seguro (e dolorido... e frio). Estaria viajando com alguém? Deveria estar, não é?
Ymoso estava confuso. Suas memórias bagunçadas. Como chegou naquele lugar? Porque venta tão pouco naquela fenda verdejante? E ... Por que diabos está caminhando?
Parecia um movimento involuntário, de cruzar o vale. Ia para a frente autômato como um zumbi... E nem sabia de onde tinha vindo. Um caçador nortenho como ele sabe melhor. Planeja à frente, e não estaria andando exposto daquela forma... Tanto para evitar os predadores como para surpreender as presas. E Teh Ymoso já não era um mero caçador fazia muito tempo!
Ele encurva o corpo. Queria caminhar para junto da parede. Mas não conseguia com facilidade.
Suas pernas não respondiam corretamente. Era como cessar a inércia de uma corrida ladeira abaixo... O movimento mais natural era seguir para a frente, e ele precisa esforçar-se na direção do paredão. O bárbaro que chutou Drazhu para os mil mundos estranha.

Chegou ao ponto que os “Dedos da Terra” cessaram sua marcha pouco antes de chegar à parede. Não conseguia, nem com sua prestigiosa força erguer um pé que seja para um passo. E Teh arrancava aquelas plantas com raiz e tudo com grande facilidade desde sua adolescência.
- Para onde vai?
A voz era de uma mulher, e lhe era familiar. Reconfortante. Vinha de trás do bárbaro, mais ou menos do ponto em que ele cessou voluntariamente sua caminhada. Ymoso vira-se e vê a moça alva com cabelos negros, olhos ainda mais escuros. Sua beleza era sobrenatural... E vestia uma leve túnica a flutuar pela pele branca. Ela era familiar a Ymoso, embora ele não pudesse imaginar como esqueceria uma donzela tão bela.
- Seu lar fica na saída do Vale! – fala ela, parecendo surpresa. – Está tão perto! Por que desistiu?
Teh deu os ombros. Percebeu seus pés mais livres. Estava mesmo com frio, um frio que suas peles não ajudavam em nada... Pelo menos a dor era quase nenhuma agora.
- Perdão, senhora. – Teh não era polido, mas tentou ser. – Mas já nos conhecemos, não é?
A dama branca sorri.
- Sim, somos velhos amigos. – fala ela. – Mas você sempre nega meus favores... Felizmente, eu posso enfim te levar para a casa.
Ela era gentil, e seu sorriso era sincero. Tanto que revelou ao selvagem Nortenho sua identidade.
Tudo fazia sentido agora. Os passos morosos mas constantes. A familiaridade. Até mesmo porque o frio aumentava e a dor diminuía.
Teh Ymoso estava morrendo. E, uma vez mais, a Morte veio até ele.
Lembrava claramente agora. Um acampamento na estrada para Stonefort, perto de uma encosta perigosa. Leafar berrando em pânico. Uma onda de Kobolds lançando-se sobre eles. Uma batalha dura que aos poucos os Libertadores venciam... Mas com um ato suicida, quatro dos monstrinhos juntaram-se para empurrar o mais ameaçador dos seus inimigos por um despenhadeiro. Ainda no caminho em direção ao chão bateu a cabeça e perdeu a consciência.
Ymoso recupera seu machado. Parecia que o fazia materializar do ar. Ainda deveria estar segurando a arma no fundo do penhasco, e sua mente a trouxe para o Limbo... Mas era um ato em vão. O que iria fazer? “Matar” a Morte?
- Uma vez mais você resiste. – A dama parecia estar decepcionada, e não furiosa ou frustrada. De alguma forma, aquilo preocupava mais a Teh do que a fúria da deusa.
A simplista mente do Bárbaro usa a mais simples das lógicas para decidir o próximo passo. Se a Morte queria que ele saísse pelo norte do vale, ele iria correr para o sul.
Os “Dedos da Terra” voltam a firmar mais do que deveriam. E para isso, o Machado serviu. Quando o monte envolvendo os pés e as canelas do aventureiro eram de monta, alguns golpes os livravam e continuava a fuga. Era uma fuga patética. Avançava morosamente, mas avançava...
- O que tem de tão importante do outro lado? – a Morte soava como uma criança confusa, mas era intencional. Queria convencer Teh a não ir. – Você fugiu de mim em troca de uma vida árdua de frio e fome numa montanha. Depois, fugiu de mim para servir como escravo, sendo chicoteado e torturado! Porque se agarra à vida com tanta ânsia? Não seria mais fácil voltar para sua casa? O conforto, onde a dor e as criaturas não poderiam mais alcançá-lo?
As folhas das gramas pareciam mais fortes agora do que antes. O pesado machado de batalha logo não dava vazão à fuga do herói. Em compensação, a Morte deslizava sobre as gramas como se fosse o vento. Uma única daquelas que se agarrasse na leve túnica de seda faria a divindade expor seus pequenos e firmes seios, mas não ousavam.
- Por que você me quer aqui? – tentou retrucar o bárbaro. Era óbvio que não conseguiria nada disputando forças com a Morte. – Sou tão mais útil do outro lado do Vale! É almas que você quer? E os Goblins que te mandei quando fugia das Ruínas de Drazhu? E os bandidos que assaltavam na estrada do Deserto? E os gladiadores e guardas que ceifei quando me meti naquela confusão na Arena da Falange roxa?
A Morte ria contidamente. Como se ouvira uma besteira monumental. Teh não volta atrás com seu discurso... Era o único argumento que tinha. Se aquilo não funcionasse, cometeria a heresia das heresias, e teria de “matar a Morte”.
- Então você é meu instrumento, porque traz outros até meus domínios? – fala ela, como se reduzisse seu intelecto potencial para tratar com uma criança.
- Sim! – urra esperançoso o bárbaro. – Eu bani um Lich! O Lich é um monstro que se livrou da mortalidade, não é? Ele cometeu a ofensa das ofensas! Não eu! Você me liberta, e na melhor das hipóteses, daqui a uns oitenta anos eu vou estar tão velho e cansado da vida que virei até aqui por conta própria!
- E até lá, você vai continuar “enviando almas”? – fala ela com descaso.
- Pelo meu machado eu irei!
A morte sorri, com uma luz piedosa.
- Olhe atrás de você.
Aquilo era uma boa notícia. “atrás de você” era a saída do Vale. Teh vira-se. A alteração da consciência fazia surgir uma caravana. Pessoas seguiam numa fila, no mesmo passo autômato que o Bárbaro dava na direção de “seu lar”. Elas estavam todas cobertas por mortalhas e capuzes a cobrir-lhe a cabeça e as feições.
- Enviar-me almas com um machado é muito fácil. Mas enviar-me pela mera decisão é mais difícil. – fala a Morte. – A minha colheita foi boa hoje... Eu creio que poderia deixar um destes ir. A menos... Que queira tomar o lugar daquele que eu iria libertar...
- Sim! – fala entusiasmado Teh. – Eu mereço tanto quanto qualquer um deles! Eu garanto!
- Não quer nem mesmo pensar um pouco?
- O que há para pensar? Se eu quero a Vida ou a Morte? Minha escolha é a Vida!
Depois de falar, Teh percebe que poderia ter ofendido a Deusa grandemente. Fica receoso da reação da Morte, mas ela não pareceu abalar-se.
- Então vá, Teh, chutador de liches. – ela fala com ironia. – Poucos são tão ousados ao ponto de reescrever seu próprio destino. Espero que entenda o porquê para a próxima vez que nos encontrarmos.
Com as palavras da Morte, os “Dedos da Terra” afrouxam seu agarro. Ainda era moroso, mas possível a jornada para a entrada do Vale. À medida que avança, O Frio diminuía e a Dor aumentava... Deveria ser a punição da Deusa... Voltar a sentir dor.
Pelo menos assim Teh pensou.
O vale era estreito, e, mesmo se esforçando, não era possível não cruzar com a procissão. Aqueles que recentemente morreram. Parecia uma meia dúzia, mas instintivamente, Teh sabia que eram mais...
“Não quer nem mesmo pensar um pouco?” A pergunta da Morte ecoou em sua mente, que divagava com a dor, agora consideravelmente aguda. A princípio, pensou que era um teste, ou um flerte para que ele desistisse e se entregasse. Mas no contexto, parecia mesmo uma amiga dando um importante conselho, e sendo sumariamente ignorada.
No que teria de pensar? Teh passava ao lado daquelas pessoas misteriosas que marchavam para a Morte. As primeiras já estavam ao lado da Deusa, como se caminhassem mais rápido após passar pelo bárbaro, mas as últimas ainda estavam ao seu alcance.
E então, Teh “pensou”, como a Morte pediu e foi ignorada:
- Se este é o meu Vale da Morte ... Se lembra tanto a minha terra... E se eles estão aqui também...
Uma balançada de cabeça brusca. Algo movia seu corpo inconsciente no mundo dos vivos.
- Este é o mesmo Vale da Morte para eles! – conclui apressado Teh, sentindo que a Dor o despertaria em breve. – Eles são da ... Da minha Terra!
A noção de tempo e espaço daquela caminhada simbólica era diferente da no mundo físico. Teh não tinha forças para desafiar a caminhada daquela vez. Mas ainda estava ao alcance do último da fila da procissão. Ele estica seu braço, e apanha com a ponta dos dedos o capuz deste que marchava para “casa”.
Os cabelos castanhos cacheados surgem. Os olhos sem vida ressaltam da pele grossa acostumada com as ventanias cortantes das Montanhas da Neblina.
Era sua companheira. Aquela por quem Teh Ymoso chegou a ver a Morte pela segunda vez, quando se sacrificou aos batedores de Drazhu.
- YIRMA!!!!
Teh acorda berrando. Esticou as mãos para alcança-la... Mas ao invés de sua companheira, suas mãos agarraram o pescoço de Elohin, o mago, que descera com dificuldade para recuperar um cadáver.
- Vo-Você está me sufocando! – protesta sem fôlego o arcano.
Teh ainda estava confuso. Mal retinha suas memórias. Era como um sonho, que está vívido em sua mente quando acorda, mas aos poucos, ele se esvai.
- Eu não acredito! – urra Leafar, que estava no meio da descida. – Você é teimoso demais até para morrer?!?
O Bárbaro pensa em retrucar, mas não consegue. Seu crânio estava rachado, ele sentia. Mover a língua e o maxilar era uma penúria, como nadar em um rio de agulhas. Estaria além de qualquer ajuda médica e provavelmente voltaria àquele vale em poucas horas... Mas Teh Ymoso vivia em um mundo mágico. Um mundo onde uma bebida vermelha em uma pequena garrafa arredondada restaura seus ossos e sua carne, e afasta a dor e o frio simultaneamente. Que a vida à qual se agarrava por um fio lhe retorna como um manto.

A dúvida era: Teria escolhido o certo?

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