O Capitão Afrânio
Gusmão já havia visto horrores de sua profissão, em ambos os lados
da lei. Mas nada como o cômodo da sua nova casa.
Era um estúdio do
antigo morador, um colega que ele matou...
Luiz Donato Fagundes
foi o motivo de seu descaminho. Então um tenente da polícia militar
daquele estado, apresentou ao colega desiludido com a violência e o
malquisto salário de protetor da segurança pública com o canto da
sereia da máfia. E depois, passou a enganar a máfia. Donato era
inteligente... Conseguiu manter seus esquemas por anos, e isso deu
considerável fortuna a ele e a seu guardião Gusmão.
Mas o exemplo de
Donato atiçou Gusmão. Ele logo aprendeu as manhas do
empreendimento, e ainda conquistou respeito e confiança tanto da
Força quanto da Coisa Nossa. Algo que o estratégico colega
mostrava-se incapaz. Então, com um infeliz assassinato no
"cumprimento do dever", Luiz Donato Fagundes faleceu.
Fagundes não teve
esposa e filhos reconhecidos. Era esperto demais para isso, e Gusmão
cuidou para que isso ocorresse. A família ficou com os bens óbvios.
Os ocultos, somente Gusmão sabia quais eram. Com algumas notas em
uma mão e o calibre 38 na outra, os laranjas entregaram o espólio
ao comparsa sobrevivente.
Afrânio tinha esposa
e uma filha. Por etiqueta social, a jovem Isabela foi batizada e o
"tio donato" foi o padrinho. Agora, a família de três
mudava-se para o casarão Fagundes.
A construção à
beira do rio era enorme. Projetada pessoalmente pelo Donato, em uma
zona próxima à cidade, mas não muito. Era á beira do rio, em zona
de proteção ambiental que jamais era fiscalizada. Tinha um estábulo
com três cavalos manga-larga, gato de água, gaz e luz; saneamento
melhor do que muitos bairros nobres da cidade. A suíte de casal era
gigantesca. Não só a cama ampliada para as orgias regulares,
sistema de som, jacuzzi e um balcão projetado para cima do rio,
sistema de som individualizado, closet maior que muitos apartamentos
da cidade. Fora esse, mais quatro quartos consideráveis, três
outros menores, e o Estúdio.
"Estúdio"
porque era onde o finado Donato mantinha sua papelada. Era sua sala
de pensar, com as paredes forradas de portinholas dos armários
embutidos, quadros para desbaratinar o clima, tapetes persas ao chão
e fazendo as vezes das cortinas, que quando fechados podiam mergulhar
o quarto em uma sombra tenebrosa.
Também tinha, dentro
de um armário maior na extremidade oposta à porta, o sistema de
segurança. Havia uma sala para os seguranças, mas todos os
monitores eram espelhados naqueles, com luzes verde. A luz era tão
intensa que suplantava a lâmpada regular do quarto, combinando com a
escuridão das janelas acortinadas e os odores de cigarros e charutos
diversos consumidos por Fagundes ao longo dos anos.
Não era um cômodo
amplo. A mesa alta e brega de carvalho ocupava a totalidade do
espaço. Alguns diziam que Só assim Donato sentia-se seguro... Pobre
tolo.
E então, os boatos de
que era assombrado.
A diarista jurava que
as cortinas fechavam-se sozinhas. De vez em quando, os papéis voavam
para fora das mãos de quem passava à frente da porta. Várias
vezes, as portinholas baixas - quase à altura do chão - abriam-se
de repente e atingiam Gusmão ou a esposa - Ângela - na canela.
Ferimentos sérios. Chegava a sangrar.
Sons eram ouvidos
madrugada adentro. Desde arrastar de móveis a resmungos lamuriosos.
Mas uma noite, Isabela
não estava em seu quarto. Era noite alta. Aquilo incomodou a
princípio... Mas o incômodo tornou-se medo ao averiguar os
primeiros cômodos e não achar a pequena, que tinha sete anos à
época. E então, veio o irracional pavor. Todos os cômodos foram
revirados, mas nada. Ela não estava na área da churrasqueira, no
estábulo, na piscina, em nenhum dos vários quartos, ou na suíte
luxuosa. nem na cozinha.
Inconscientemente, o
estúdio do Donato foi o último lugar a checarem.
E lá estava ela.
Dormia bem enrolada no edredom, com um travesseiro. Usava a enorme
mesa de carvalho como cama. Parecia em paz... Alheia graças à
espessura da porta e das cortinas à gritaria que seu sumiço
provocava.
Até que o pai berrou.
Como aquela ingrata dá
um susto desses na mãe? O que estava fazendo naquele quarto
desagradável? Como ela ousara?
Numa explosão de ódio
incompreensível aos seres de boa índole - muito mais á pequena
alternando entre a consciência e o sono, lançou um tapa no rosto
dela. Tapa que a acordou completamente, emendando um chorro de
angústia e desespero. Um berro infantil que atraiu a mãe.
E outra coisa.
O punho daquele
covarde ergueu-se novamente. Mas não foi desferido. A mesa de
carvalho, com seus 150 quilos, parecia ganhar vida e arrastou-se pelo
carpete, projetando Afrânio para trás. Indefeso, o proprietário
chocou-se com violência entre dois armários embutidos.
Aqueles armários
estavam com a porta aberta. Madeira de lei, forte e vigorosa. A
fechar-se repetidamente sobre Afrânio, ainda imprensado pela mesa. O
rosto do bandido vertia sangue. Estava abalado demais para sequer
reagir.
Ângela estava pasmada
por longos segundos, e então postou-se a tentar afastar a mesa.
Sequer pensava nas portas a mover-se sozinhas. Sua força, combinada
à do marido, libertaram-no lentamente. Isabela, aos prantos, deixava
o quarto.
Instantes antes de se
libertar, o armário na extremidade oposta se abriu de supetão. A
luz verde dos monitores - que deveriam estar desligados ha dias -
inundaram aquele lugar com uma aura sobrenatural. Algo profano.
Com um impulso final,
Afrânio afasta o suficiente a mesa de carvalho e salta por cima
dela. Rola para longe do castigo do armário da parede lateral. Uma
vez livre, ele salta para a liberdade, tão rápido, que deixa a
esposa para trás.
Os tapetes persas que
faziam vezes de cortinas voaram, projetados por vento invisível. Era
um tecido grosso que arranhava com sua lã trançada em movimento de
chicote, mas não o suficiente para deter o fugitivo. Ele projeta-se
pela porta do cômodo, e escorrega caindo, deslisando pelo corredor
de acesso, só parando ao esbarrar no corrimão da escada ascendente.
Mas um som fixou-se em
sua alma. Um berro, imediatamente depois de uma batida seca.
Ângela tentou sair do
quarto também, mas quando pensava estar livre, a porta bateu. Seu
braço ainda fazia a transição. Ela estava caída, com o braço
entre o vão e a porta. A pele arroxeou quase instantaneamente. A dor
era imensurável.
Aqueles sons infernais
despertaram os dois seguranças, a babá e a empregada fixa. Eles
apareceram para ver o que estava acontecendo. Pouco depois o rapaz
que cuidava do estábulo e manutenção do casarão apareceu também,
mas já estavam terminando os trâmites. Aos olhos dos primeiros,
estavam os patrões visivelmente feridos, a marca de mão no rosto da
Isabela... E mais nada.
Afrânio nem se lembra
quem guiou-os à urgência hospitalar mais próxima. O braço de
Ângela era o mais grave. O casal não trocava palavras até eles
serem chamados. Tinham o plano de saúde da polícia. O atendimento
era preferencial.
Mas a enfermeira, ao
observar a natureza dos ferimentos, suspeitou de algo. Pediu para o
capitão Gusmão aguardar na sala de espera enquanto atendia a
esposa. Estranhou a separação... Imaginou que seria pelo tratamento
diferenciado a homens e mulheres.
Soube depois que houve
fratura no braço da esposa, pelo assistente social plantonista.
Correu no hospital
suspeita de violência doméstica, e Ângela foi obrigada a fazer
exame de corpo de delito. Afrânio protestou e tentou fazer valer
suas divisas, mas nada adiantou. E para piorar, nenhum dos dois
poderia falar do quarto assombrado.
A história que os dois
combinaram era de que Afrânio caiu da mesa ao subir para trocar uma
lâmpada, uma perna cedeu, e ele esbarrou violentamente na porta,
imprensando o braço da esposa. Era o melhor que conseguiram, e havia
muitas lacunas na versão. A delegacia de proteção á mulher não
era subornável muito menos intimidável. Aquele processo seria
complicado para sanar...
... E não era a maior
preocupação do casal.
Só na tarde do dia
seguinte os dois voltaram à casa. Foram direto para o quarto
proibido. A violência da noite anterior chegou a provocar rachaduras
no compensado das paredes em volta da porta, mas fora isso, nada
parecia estar fora da ordem. A mesa estava no centro. Os tapetes, no
lugar. Os monitores desligados, e funcionando regularmente. Os
funcionários da casa estavam certos que tratava-se de uma briga, e
não de intervenção sobrenatural, mesmo com os boatos do quarto
assombrado.
Alguns até sussurravam
alucinações decorrentes de drogas mais fortes que o casal consumia.
Gusmão estava
dividido. Não era religioso, e era melhor passar por maluco que
batia na esposa do que pinel que surta. Seus imóveis na cidade ou
estavam alugados ou não possuíam casa construídas. Teriam que
passar, ao menos aquela semana, ou na casa ou em um hotel.
A contra-gosto de
Ângela, Gusmão decidiu não mostrar fraqueza Se aquilo saísse do
âmbito familiar, poderia ser sinal de fraqueza aos seus contatos e
concorrentes. Sua vida estaria em risco.
Mesmo não acreditando,
o quarto assombrado era ainda um lugar de medo. Ventania espalhando a
correspondência, a porta abrindo e fechando aparentemente sozinha e
com as janelas fechadas... Tudo consideravelmente aumentado. Mas
Isabela parecia não se importar. Nenhum dos "fenômenos"
ocorreu em sua presença.
Gusmão sabia o que
viu, mas os papos enlouquecidos dos funcionários eram tão
descabidos e diferentes de sua própria experiência que não dava
crédito. E por isso, passou a não dar crédito em suas próprias
memórias. Talvez Isabela tivesse empurrado a mesa quando ele correu
para cima dela. Talvez na confusão Ângela fechou a porta no próprio
braço - ela já fechou a porta do carro na ponta dos dedos uma vez.
Ele legitimamente
caminhava ao ceticismo quanto ao que achava que viu. Especialmente
quando era obrigado a desmentir a si mesmo nas audiências na
delegacia de grupos vulneráveis - sim, o tapa em Isabela só
complicou sua situação. Claro, com Ângela do seu lado, esperava
que o assunto não fosse para a frente.
Até que recebeu uma
carta. Não tinha remetente, mas tinha um selo antigo. Identificou a
agência dos correios do carimbo - era a da avenida das Flores, a
mesma que ele e sua secretária usava. O envelope era até familiar.
Só tinha uma nota lá
dentro. Parecia ter sido escrito por um semi-analfabeto, garranchos
de caneta de tinta verde, difíceis de ler. Mas conseguiu decifrar a
mensagem:
"Sabia que Ângela
já dormiu com Donato?"
Aquele envelope, algo
estranho nele. Era de papel vermelho escuro. O que aquilo queria
dizer?
O sangue do capitão
ferveu. Ele rumou para seu quarto... A luxuosa suíte nunca mais
usada com festa desde o incidente do quarto assombrado. Ângela era
uma mulher bela e voluptuosa, trabalhada pelos genes favorecidos e
pelo Dr. Silva e Lopes, cirurgião de estrelas globais. Mas parecia
uma mulher alquebrada, muito além do gesso azul no antebraço.
- Ângela, o que você
sabe disto aqui?!? - resmungou, e jogou o bilhete na cama, onde ela
podia ver.
Ela estava estranhando
a recepção abrupta. Pensou em pegar o bilhete para ler, mas com a
face escrita para cima, ela nem chegou a apanhá-lo para saber o
conteúdo. Sua mão encolheu, como se tentasse ignorar sua existência
faria com que ele deixasse de existir.
Uma confissão velada
quase que assinada e registrada no cartório.
A mão espalmada de
Afrânio agitou-se na direção do rosto de Ângela. Com uma reação
rápida, ela aparou com o braço são, mas a violência foi tanta que
a projetou para traz, fazendo-a cair da cama. O capitão esticou-se
por um momento, mas estava fora do alcance. Numa reação predatória,
ele levantou-se e contornou com passos firmes na direção de onde a
esposa havia caído.
- Afrânio
pelamordedeus! - protestava em prantos copiosos a esposa. - O
processo! Pense no Processo, Afrânio!
Gusmão empurra a cama
violentamente para o lado, derrubando a mesa de cabeceira e o abajur
de seu lado. Foi o tempo dos apelos da esposa chegarem a ser ouvidos.
Ainda corria o maldito processo pela agressão do quarto assombrado.
Novos ferimentos desmoronariam a defesa do "acidente bizarro".
O racional e o explosivo e violento emocional se neutralizaram, e por
alguns segundos, o capitão ficou sem saber o que fazer, sem saber o
que falar.
Seu âmago despertou
com a chegada de Marquito, o segurança. Negro gordo e alto, com ar
ameaçador. Depois dos boatos que o quarto assombrado ganhava vida, o
curioso e limitado capanga aprendeu a se apressar quando acontecia
baderna. Acabou flagrando o casal em vias-de-fato, desacreditando
ainda mais a lenda.
Afrânio agarrou o
bilhete da cama, juntou com o envelope, com os dentes trincados em
fúria e frustração, e encaminhou-se ao segurança.
- Eu quero que descubra
... Quem foi que mandou esta carta pelo correio! Não importa como.
Só... Descubra!
- Mas ... Mas fui deu,
dotô! - reagiu ingenuamente e naturalmente o golias.
Outro homem, um menor e
desarmado, teria sido esmurrado na cara. Mas mesmo com a lealdade de
Marquito, seu vulto avantajado manteve o chefe na ombridade ante a
vontade de agredir.
- Vamos ficar calmos...
E pense bem no que você vai me dizer... - falou Gusmão. - Você
está me dizendo que escreveu esta carta?!?
- Não, dotô. -
corrige. - Eu estou dizendo que em quem mandou a carta!
- Por que você mandou
esta carta?
- Ué? Eu faço isso
com todas as cartas! Toda manhã pelo as cartas na sua mesa, nas da
secretária, e levo para o correio. Lembro dessa aí porque tava sem
remetente. Nem era o primeiro que postei da correspondência da
casa...
"Correspondência
da casa"... Meditou Gusmão. E ele lembrou. Lembrou por que era
tão familiar.
Sem uma única palavra,
caminhou ao quarto assombrado.
Girou a maçaneta. O
quarto deveria estar trancado, mas não estava.
Ele abre a porta. O
quarto parecia impecável. Tapete arrumado, mesa centrada, armários
fechados. Ninguém entra no quarto desde que os patrões voltaram do
hospital no dia da agressão.
A mesa... a maldita
mesa... Afrânio hesita em entrar, e aproxima-se cauteloso da mesa.
Era uma mobília fina, de mogno. Em alto-relevo, era esculpida o
porta-canetas e diversos cases profissionais.
Gusmão pega uma das
três canetas. Sua tinta era verde. Verde como o do garrancho.
Na case para
envelopes... Um envelope vermelho-escuro. Idêntico ao da mensagem
anônima.
Em sua mente, ouviu uma
gargalhada. Marquito, que seguiu o patrão, não chegou a entrar no
quarto proibido nem a ouvir a gargalhada, mas um arrepio sobrenatural
correu sua espinha e ouriçou todos os pelos do seu corpo.
Os dois deixaram o
quarto apressadamente. A porta bateu... Sozinha.
- Marquito... Quantos
desses envelopes você mandou?
- Sei lá, Dotô... -
protesta. - Já falei que de vez em quando vinha um vento do quarto e
derrubava o envelope, não falei?
Como não vira antes?
Ninguém é tão estabanado. Algumas correspondências não podiam
ser rastreáveis, então fazia por correio ou por cartas entregues em
mãos. Marquito juntava tudo, de contas de luz a chantagens. Desde
sempre o "vento" espalhava os papéis nas mesas ou mesmo
nas mãos do segurança/entregador.
No dia seguinte, houve
uma nova carta. No mesmo envelope, mas a letra estava ligeiramente
melhor. Dizia: "Achou o livro-caixa do Donato?"
"Livro-caixa"?
Nunca soube de nada parecido. Mas Donato era organizado a ponto de
ter algo assim. Não era recomendável, pois seria provas contra ele.
Provas contra os dois. Contra pelo menos três grandes chefões que
eles encobriam e tratavam de negócios.
Ângela, abalada,
tentou ir para um hotel. Gusmão não permitiu... Mas não estava
estourado como na noite anterior. Ela então confessou.
Estava virada de
bêbada, e estava apaixonada pela casa. Sabia que em breve o marido
daria um golpe e quis ver melhor a propriedade, e tendo um "affair"
era a forma mais segura de ter acesso a tudo. Afirmava que jamais
teve sentimentos envolvidos - como se isso importasse para um homem.
Ângela achou que suas lágrimas, juras e devoção conquistaram a
paz com o marido, quando na verdade o pensamento de um "livro-caixa"
estava rodando na mente de Afrânio.
Porque se tais
documentos existissem, estaria muito provavelmente no quarto
assombrado. Independente de haver "algo mais" lá ou não,
com tantos armários - ignorando compartimentos secretos - seria lá
que Donato esconderia.
Afrânio decidiu que
não iria ser visto na rua. Se o maldito documento foi ao longo dos
dois anos em que morava na casa do Donato juntado para ser mandado
para a máfia, para o Ministério público ou para "sei mais
quem", estaria muito exposto na rua. Preferiu esperar alguma
outra correspondência. Podia ainda ser só um chantagista. E com um
homem de carne, ele poderia lidar.
Chegou Marquito com o
correio. Mas nada. Nenhum envelope vermelho. Fez ligações para seus
contatos - também herdados de Donato - para alertar se algo
acontecesse. Eles estranharam, mas disseram que iam verificar.
Mas chegou um envelope.
Afrânio quase pisou
nele enquanto desligava o telefone. Estava no primeiro degrau da
escada ascendente. A mesma cujo acesso é no extremo oposto ao quarto
assombrado de Donato.
Trêmulo, o capitão
apanhou-o. Olhou ao redor... Poderia ter corrido por baixo da porta
até aqui? Só ele estava naquele setor da casa... Só quem conhece a
rotina da casa saberia que ele estava sozinho naquele setor.
Ou era um chantagista
dentre os funcionários... ou...
- D... Donato?!?
A questão tímida foi
feita na direção do quarto. Obviamente não houve resposta.
Afrânio abriu o
envelope. A letra tinha similares à caligrafia dos primeiros, mas
era muito melhor. A mão não tremia mais. O traço era firme. A
tinta ainda era verde.
A mensagem: "Assoalho
solto no pé da mesa. Defenda a sua família".
Seria alguma armadilha?
Se ele entrasse no quarto assombrado, estaria sozinho. Um agressor o
teria onde queria... Seja ele um fantasma ou um homem de carne.
Não tinha como Donato
ter sobrevivido. Trinta tiros, sete na cabeça. Corpo incinerado com
pneus. Arrancou os dentes do crânio para não ser identificado!
Gusmão acompanhou cada um desses passos!
Gusmão passou o resto
do dia na suíte, abraçado com Ângela. Seis da tarde, Isabela
chegou da creche. O telefone toca.
Era Michel. Infiltrado
no MP. Com a estranha ligação do novo chefe, ele foi fazer uma
pesquisa abrangente nos processos sigilosos da corregedoria, e acabou
esbarrando em uma delação premiada do Salvatore, um chefão
italiano. Normalmente, ele iria atrás do Gusmão se tivesse
problemas com a lei. E jamais entraria no programa da delação
premiada se não estivesse sabendo de algo muito ruim. Não teve
acesso ao processo principal, o que indicava que mesmo o próprio
Michel estava na lupa de alguma grande operação.
O conselho de Michel
era: "Saia do pais agora!".
Seria efetivo se
tivesse ligado algumas horas antes. Provavelmente Michel ligou quando
já estava no aeroporto... Ou mesmo de dentro do avião.
A cabeça enevoou com a
perspectiva de algo tão grande no MP e que Salvatore estava tomando
providências por conta própria não tivesse passado por seus braços
longos até ser tarde demais. Mandou Ângela recolher algumas roupas
- o mínimo - e foi buscar Isabela.
Não a achou no quarto.
Ouviu tiros.
Nem sequer cogitou
qualquer outra coisa... Foi na direção do quarto proibido... do
quarto assombrado. Sua carreira chamou a atenção de Ângela, que
temendo o pior, seguiu.
Isabela não estava no
quarto proibido... Ainda. Estava parada na frente dele. Segurava um
envelope. A visão do pai reativou a memória do tapa de alguns dias
antes, e ela ficou imóvel.
Gusmão nem pensava
nisso. Só queria saber do envelope. Tomou com certa rudeza e leu-o.
"Agora é tarde
demais.
Isabela é inocente.
Ajude-me a protegê-la.
Assoalho no pé da
mesa. AGORA!"
Novamente tiros. De
cantos distintos da casa. Gusmão apanhou a filha e fez algo que
jamais imaginou-se fazendo antes... Entrou de livre e espontânea
vontade no Quarto Assombrado.
Ângela tentou voltar,
mas ouvia berros na escada. Marquito gritava "estão aqui
dentro!" Sem opção, seguiu o marido.
O minúsculo quarto. A
mesa ocupando quase tudo. Os tapetes fechavam as janelas.
A Mesa é arrastada por
uma força invisível. mais suavemente do que no primeiro fenômeno.
O tapete debaixo dela se desenrola. O assoalho que ficou oculto por
tantos anos é revelado. Em especial, uma tábua proeminente que
subia quando o peso da mesa foi aliviado.
Era uma sofisticada
obra de marcenaria. A tábua destrancava um compartimento secreto.
Nele algumas granadas, uma AK 47 empoeirada, muita munição, e
alguns livros. Uma brochura pequena destacava-se: Dizia na capa:
"livro-caixa". Suas folhas pareciam ter sido arrancadas.
A capa grossa não
poderia entrar nos envelopes... Mas as páginas sim.
Ângela e Isabela
ignoravam o significado daquilo... Mas para Afrânio era claro: Matar
ou morrer.
A Mesa movia-se mais
uma vez. Desta vez. as pernas deixavam o chão. Não havia mais como
esconder o sobrenatural, mas mesmo aquele supremo ato não conseguia
imputar mais medo na família. Não mais do que o que ocorria além
das portas.
A mesa de carvalho cai
de lado, com as pernas voltadas para a família. Era uma sólida
barricada improvisada. As portas fecham-se subitamente. Trancas são
ouvidas. E enfim, o estalo de um disjuntor oculto é ouvido.
A casa, a propriedade
inteira mergulha na escuridão, exceto as telas verdes do monitor
atrás dos de Afrânio. Donato projetou aquele quarto como um quarto
do pânico. Uma última defesa. Ele tinha controle das comunicações
e da energia de todo o complexo. Via todas as câmeras, mesmo
desativando as do segurança. As câmeras de visão noturna...
... E ainda tinha o
fantasma a seu lado.
Via Marquito e Teco
mortos na escadaria em uma das telas. Dois carros parados além dos
portões derrubados. Viam dois homens estranhos subindo para a suíte,
quatro abatidos por Marquito e o colega antes de sucumbirem, e mais
três chegando ao quarto assombrado.
Um deles ele
reconheceu. Salvatore.
As portas são
testadas, e resistem. Forçadas com um golpe breve do ombro, e nem
sequer abalam-se. Gusmão apanha a AK e apoia-a na mesa.
Salvatore recua. Seus
dois capangas pegam distância para um golpe definitivo. Mas sem que
ninguém esperasse, as portas abrem-se de supetão. Gusmão tem tiro
livre nos bandidos desguarnecidos. Os dois caem alvejados múltiplas
vezes. Salvatore tenta aproximar-se do vão, mas a porta se fecha.
Tiros são deflagrados, mas morrem na porta.
Gusmão estava mais
esperançoso. Poderia matar um a um. Tinha a imagem, tinha o elemento
surpresa. Só restavam Salvatore e os dois que foram à suíte, e
agora desciam em seu auxílio. Eles tinham a ilusão de que Gusmão
estava encurralado, enquanto ele e o Fantasma prepararam uma
armadilha mortal.
Era Donato, seu
companheiro. Só podia ser. Ia levar os malditos italianos à ponta
de sua arma. Eles iriam sobreviver àquela noite!
Ângela berrava
irracionalmente. Mas o confiante capitão achou que era desvaneio
irracional de mulher. Homens de verdade estavam prontos para matar ou
morrer. Iriam vencer aqueles três desgraçados. Depois, iriam atrás
dos parentes de Salvatore. Todos eles!
Mas Ângela não
berrava por isso. Ela só não conseguia colocar em palavras.
Precisou agarrar o marido com sua única mão boa para que percebesse
Isabela.
Ela flutuava, como se
gentilmente erguida por um homem invisível. Uma cortina afastava-se,
revelando uma janela estreita. Isabela já estava do lado de fora do
quarto quando Gusmão começava a entender o que ocorria. Mas aquilo
era melhor, não era? A filha ficar longe do tiroteio.
- Gusmão, Chega! -
ouvia uma voz. O forte sotaque de Salvatore. - Vamos conversar!
Pelo vídeo, via que o
chefão guardava a arma, mas seus capangas ficavam na lateral do vão.
Ele saca algo do
paletó. O ângulo da câmera e a luz verde impediam de identificar
pela câmera. Mas o som era fácil de reconhecer... O som das trancas
da porta soltando-se.
- Sábia decisão. -
fala Salvatore, sem saber que a porta estava se destrancando sozinha.
Ângela e Gusmão se abraçam atrás da mesa de carvalho.
A porta se abre
lentamente. O vulto do chefão italiano surgia na luz verde dos
monitores. Salvatore tomava ciência do que acontecia naquele lugar,
e percebe quanto Afrânio e Ângela estavam longe da porta. Em sua
mão, um envelope. O mesmo que o levou até a casa do Donato naquela
fatídica noite.
Do compartimento
secreto onde estava a arma, os pinos das granadas voam.
O quarto era pequeno e
abafado. Era vigoroso para se tornar um quarto do Pânico. E
comprimido, o ar dele tornava a explosão das granadas muito mais
letais do que seriam.
Em uma explosão de
fogo, fumaça e detritos, morreram Salvatore, um dos capangas, e o
casal Gusmão. O capanga sobrevivente perderia uma das pernas e
estava inconsciente.
EPÍLOGO
Como já disse
Shakespeare, "há mais coisas entre o céu e a terra do que
sonha conhecer a vã filosofia". O que poderia explicar a
permanência do espírito de Donato na terra após seu assassinato?
Sua teimosia e
genialidade permitiram que ele descobrisse um modo? Ou sua fúria
vingativa ante a traição dos Gusmão inibia seu derradeiro
descanso? Ou seria movido pelo pensamento de salvar a pobre e
inocente Isabela de seus pais violentos e abusivos?
Um espírito é
invisível para os vivos. Atravessa paredes e ouve à distância, mas
não consegue tocar em nada. Mas o Quarto Assombrado, onde por dias a
fio Luiz Donato passou pensando na vida ou travando seus intrincados
planos de superar o status quo, ele conseguia. Teria resquícios
psíquicos ou emocionais sido os responsáveis? Jamais saberemos. O
fato é que o Quarto Assombrado era o único lugar que ele poderia
minimamente afetar o mundo físico.
Por meses, ele aprendeu
os segredos dos Gusmão. Urrou de dor ao confirmar a traição. De
Ângela que prometera o amor e fugir de Afrânio... Que lhe deu uma
filha. E o que dizer de seu primeiro parceiro? Seu amigo e pupilo que
por pura ganância o matou e se assenhorou até mesmo de sua casa?
Levou meses até que
pudesse mover a caneta. Meses coordenando a rotina da casa. Até
conseguir mandar a primeira carta-teste denunciando a infidelidade da
esposa. Era preciso sacrifício hercúleo para destacar as páginas
do livro-caixa, várias vezes flagrados pelos funcionários.
Mas quando Afrânio
espancou Isabela, o pai secreto aflorou. A mesa não era mais
adversária. As portas dos armários. Mesmo algo mais sutil como
ligar os monitores. Como Donato imaginou, era tudo questão de saber
direcionar sua fúria. Ele praticamente gargalhou quando viu Ângela
deixar o braço exposto no vão da porta. Queria decepar aquela
vadia... Mas quebrá-lo valeu.
Afrânio deveria cair.
Cair por completo. Não só pelos olhos da máfia, mas pela
sociedade. As folhas do Livro-caixa foram separados em dois envelopes
igualmente incriminadores. Um, para corregedores que sabia não serem
vendidos como Michel. Outro, para Salvatore, que iria cruzar linhas
que o poder público hesitaria.
Mas o maldito italiano
irracional quase colocou a vingança a perder. Não só expôs-se na
corregedoria como vigiava a casa. Era óbvio a alguém mais atento
que os capangas dele estavam mapeando a casa... Para isso as câmeras.
Mas o debilmente do Marquito não percebeu. Mesmo com o aviso, o
cretino do Afrânio não toma atitude proativa. Que se exploda ele e
a vaca da Ângela, mas Isabela estava em perigo com o ataque de
Salvatore.
Do quarto assombrado,
ele poderia controlar tudo. Não havia limites para sua força.
Bastava posicionar os peões onde ele queria. Sabia que o dedo de
Afrânio no gatilho o deixaria hipnotizado no tiroteio. Poderia tirar
Isabela do quarto pela janela mais alta, e deixar que todos
explodissem com o quarto, a casa, e tudo o mais.
O rapaz dos estábulos
recebeu um envelope com instruções detalhadas. Instruções de
aguardar fora da propriedade para ir recolher a criança nos fundos
da casa. Instruções de onde encontraria outro envelope, com a carta
de guarda da jovem herdeira, e direito de manipular os cinquenta
milhões de reais que ela valeria até sua maioridade.
E principalmente, o
aviso do que aconteceria com ele se levantasse a mão para Isabela a
qualquer momento de sua vida.
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