- Deixa eu lhe contar da queda de Icátia.
– fala Icrino, virando um copo. – Nossa história ainda existe, mas não
em livro, ou papiro. Ou sequer em Monumentos. Estou vendo você aí, jovem
Bardo. Vai escrever?
- Eh… Não senhor. – fala o mais novo do grupo.
Icrino debruça-se no tronco que fazia
vezes de mesa. Enxuga seu longo bigode negro na camisa de seda bufante,
tirando aquilo que não bebeu da caneca oferecida pelos dois anões do
grupo. O Cigano lembra que eles falaram o nome de um templo de alguma
coisa… Um deus ou um mago que apenas os mais obscuros ouviram falar. Mas
eles precisavam de um guia para os arredores da aldeia de Lhentagar e o
Cigano conhecia as trilhas e, bem, queria estar em qualquer outro lugar
longe de Genesa.
- Eu vou acreditar em você. – fala enfim,
com um ar alegre obviamente provocado pelo álcool. – Ou pelo menos dar a
entender isso, me entende? Não gostamos da história escrita porque aí
podemos ser contestados. Mas se quiser falar oralmente, sinta-se livre.
Mesmo porque um Gajôs não teria credibilidade.
- Entendo, senhor. – fala Juan, com a cordialidade típica dos Trevilenses.
- Bem, Icátia era um reino formado por
viajantes tempos antes da Guerra da Magia. Vendíamos nossos produtos à
Velha Thames. Povinho arrogante mas com muralhas de rocha. Era sinal de
civilização antiga ter muralhas de rocha, e a nossa só erguemos antes da
Guerra. Chegamos a tratar com os primeiros Trevilenses. Mas muito
pouco. Ainda não estavam consolidados… E eles eram ainda mais metidos do
que os Thamezianos.
O semblante de Juan indica o desagrado ao mencionar a pátria do jovem bardo. Icrino chega a perceber, mas não muda sua postura.
- Não estou dizendo que ainda o são hoje…
– adianta ele. – Mas não vou dizer que não o sejam. Você seja o juiz.
Onde estava? Oh, sim. Os Aurianos.
Icrino cospe no chão e faz uma careta nessa hora.
- Claro, eram aqueles bárbaros cheios de
ouro. De uma hora para a outra, tinha dezenas de centenas de pessoas
naquele lugar estreito aos pés das Cordilheiras que eles chamaram “do
Ouro”. Tudo é “do ouro” e “de ouro” para aqueles avarentos. Claro, nós
gostávamos de ouro em Icátia. Estendemos nossa simpatia e produtos para
lá. Era como uma enorme besta-fera que precisava de comida e não se
importava com os custos. Derramavam ouro em nós. Tanto ouro que era
prejuízo comercializar com a Velha Thames. Eles nunca vão admitir, mas o
redemoinho comercial da cidadela de ouro quem provocou as guerras.
- Há relatos históricos que discordam do
senhor. – adianta Juan. – O Império era um colosso em ascensão e a Velha
Thames estava em seu caminho. O Império foi o agressor, e não Thames,
por exemplo.
- Estou dizendo o que eu ouvi de meus
antepassados, garoto. – fala o cigano com as palmas das mãos para o
alto. – E por isso eu acredito mais neles do que no que você leu. Bem,
não me lembro bem o que eu falava, mas o fato é que eles foram para a
Guerra. Foi triste porque estávamos certos que uma civilização velha e
de cavaleiros como Thames ganharia dos moleques ricos do Norte. Mas sei
lá o que eles fizeram, tomaram o reino inteiro!
- Como falei, foi os Aurianos quem
começaram a expansão. – fala Juan. – Entendo bastante porque o Império
se aproximou perigosamente da fronteira ocidental de Tréville. É
história em minha aldeia natal.
- Okey, espertinho. Quem se importa quem
começou a troca de tapas? – fala Icrino incomodado com o jovem. – Eu
estou falando de quem realmente estava lá! Meus Antepassados! Agora
posso continuar sem interrupções?
Juan avalia que o mal-humor era provocado
pelo álcool. Não duraria muito mais o mínimo de sobriedade do cigano
para contar a história. Além do mais, o último a defender um Auriano de
um Icatiano seria um Trevilense.
- Okey. – continua o cigano diante do
silêncio do jovem bardo. – Thames Caíu. Depois os Elfos da Floresta se
juntaram a eles. Tinha um reino no leste… Ou era suldeste? Chegava no
mar. Eles tomaram também, e fizeram uma cidade no deságue do rio.
Pararam no Deserto e começaram a ir procurando uma saída para o Norte e
tomando tudo o que tinha no Oeste. Estavam estacionados em Kreta,
literalmente parando uma guerra entre Minotauros e Centauros. E aí,
alguém olhou para cima e viu Icátia. Foi nossa perdição.
- Então… como foi o ataque? – fala Juan, finalmente chegando no ponto que queria.
- Sabe que até que foi civilizado? – fala
o cigano com ironia na voz. – Mandaram um batalhão grande! Tinha
cavaleiros Thamezianos e um monte de soldados de armaduras variadas, de
um paninho de seda amarelo até armaduras que andavam sem cavaleiro,
dizia meu avô. Minha avó falou que a dragoa dourada que domesticavam
estava lá, mas todo mundo dizia que não. E minha avó, sabe, já não
ganhava uma discussão que envolvia memória ha algum tempo. Eles pararam
fora, veio um parangolé de jumento e uma bandeira. Pediu hospedagem para
o Rei, e queria falar.
- Típico dos falsos nobres. – bufa Juan. – Primeiro mostra as espadas, depois mandam um diplomata de terceira.
- Isso mesmo. – ri Icrino. – Ele falou
para o Rei como era maravilhoso ser Auriano. Falava que tomaram Thames
mas nada tinha mudado. Que o Rei de Thames mandava na mesma proporção,
mas com o ouro dos Aurianos por trás. Dizia que os jovens teriam
alistamento, mas que não iriam para a Guerra se não quisessem ou não
fossem hábeis o suficiente. Que tinham mais recusas a alistados do que
envio de jovens temerosos ao estrangeiro. Que iriam trocar tecnologias,
elevar Icátia a um dos Velhos Reinos com tudo o que os sábios do sul de
Meliny haviam inventado. Sabe, papo de Vendedor. Mas os Icatianos eram
os maiores vendedores de toda a Meliny. Se a conversa era tão boa assim,
era porque tinha dente de coelho. Recusamos sem nem pensar muito.
- O que eles fizeram então?
- O parangolé foi embora e veio outro.
Esse tinha armadura brilhosa e era forte! Dizia ser um grande general!
Aí ele falou que queriam subir ao Norte e a passagem de Icátia era a
única. Tinha o reino de Nevada mais a oeste, mas o Império não tinha
chegado lá. Então ele falou que iriam tomar à força se o rei não
concordasse. Lá tinha ido todo o papo doce de virar imperiais.
- Vermes mentirosos. – bufa Juan, impressionando mesmo o cigano por se ofender como se tivesse sido com o seu próprio povo.
- O rei não quis saber, desceu e foi dar
uns tabefes bem dados naquele lazarento. Ele urrava que era violação de
tratados de guerra agredir um mensageiro, mas se você ameaça alguém em
sua casa, merece sair enxotado, ou não sair, concorda?
Juan cala-se naquele momento. Estava
assombrado com a ideia de executar um mensageiro ao invés de só o
devolver com a recusa, como os reinos civilizados fariam.
- Bem, o maldito matou o rei e conseguiu
fugir. mas não saiu limpo! – fala envergonhado o cigano. – Como falei, o
Império tava com a Guerra com Kreta, então sitiou nossa capital por
coisa de quatro meses, eu acho. Sorte que nossa geografia garantia uma
saída para o norte, mas as principais estradas estavam fechadas. Já
tinha Tréville e Doravânia, mas os seus estavam com problemas de Orcs e
Doravânia era longe demais. E eram tão metidos quanto os aurianos.
Pensávamos em vender e comprar somente. Mas a cada dia saía boatos de
que a Guerra de Kreta estava para acabar e que o Império ia subir para o
norte passando por cima de nós.
- Bem, foi o que eles fizeram. – ri Juan. – Mas como foi a defesa?
- Bem, todos os que puderam fugiram pela
passagem do Norte. Mulheres, crianças, e covardes. Nessa época de mulher
só tinha minha trisavó, umas senhoras viúvas ou as curandeiras, e a
Velha Kassdra, Uma doida que vivia no pântano e diziam poder ver o
futuro. Mas todos concordavam que a velha agourenta devia ter ido embora
com os frouxos. Dizia que iríamos perder Icátia mas que jamais
deveríamos deixar nossa terra, senão seríamos amaldiçoados pelos
espíritos malignos das vozes na cabeça da velha bruxa.
- E os Wenhajins?
- Ah, já ia chegar lá! Já ia chegar! –
repete o cigano. – Do nada, esse povo de armadura colorida chega do
Norte. Eles entram na capital, traziam comida esquisita, mas depois de
quatro meses de sítio comíamos de tudo! Um deles, de armadura negra como
a sombra da noite de lua nova, vai tratar com o Império. Dizia que
Icátia estava sobre proteção de um império também. Nessa hora, a gente
desacreditou ainda mais a bruxa Kassdra. Mas ela insistia: “Não deixem
Icátia senão maldição bláblá…”
- Os Wenhajins simplesmente apareceram e tomaram para sí a sua guerra? – estranha Juan.
- Chamou a defesa de “O Combinado
Wenhajin-Icátia”. A maior resistência que o Império Áureo encontrou!
Mais que o reino velho de Thames. Veja bem: Ninguém a não ser os muito
esclarecidos sequer sabiam do reino de Wen-ha! E eles mandaram um monte
de soldados treinados, com armas tinindo! O Império sentiu isso. Pena
que na época já tinha acabado a Guerra de Kreta e eles puderam marchar
com tudo. Quando veio o ataque, até minotauros eles tinham da formação!
Mas ‘tavam na carga da maldade mesmo que àquela altura já tinham
alcançado Primaz além das cordilheiras.
Juan estava empolgado porque chegava à
parte da ação. Mas Icrino estava mais preocupado com a boca seca. Ele
toma o último gole da caneca de madeira, enche-a de novo e toma mais um
gole. Chega a engasgar quando volta a falar.
- O Império veio que veio! – fala após
desengasgar. – Bateram na muralha da cidade que nem martelo, e aí os
Samurai, tudo ponta-de-lança, correu e empurrou para trás. Os wenjakas
não tem medo de morrer, sabe! Eu sempre digo: Não compre briga com quem
não tem nada a perder. O Império pensava assim, e deu espaço e deu
espaço. Foram dias assim, eles atacavam, os samurais desciam correndo
gritando. Mas samurais eram soldados treinados também. Eu diria que um
samurai vale mais que cinco soldados Aurianos. O problema é que eles
tinham dez soldados para cada samurai. A gente teve que fazer nossa
parte.
Icrino cambaleava de sono. Só pensava em terminar a história.
- Depois de uma semana os Aurianos
começaram a brigar como gente grande… Aí foi lasqueira. Foi morrendo
samurai, perdendo samurai, nós tínhamos uma forte artilharia de flechas e
badogues, e fundas e pedras de fogo. Mas os malditos tinham catapultas e
feiticeiros a saltar névoa de morte e bola de fogo. Minha avó falou que
a dragoa dourada dos aurianos apareceu. Desta vez um ou outro dos meus
antepassados concordavam com ela. Não todos, mas não era só minha avó.
Passamos uma semana ganhando a guerra, e no fim-de-semana eles estavam
na muralha de novo. Os Samurais na pilha de “vamos até a morte, nossa
‘e’ deles!” Não era nem “Nossa ‘ou’ deles”. Era “e”! Aí que o povo
Icatiano viu que vencer não era opção, e a gente não é doido que nem os
Wenjakas. Ainda tinha a passagem livre para o norte. Posso dizer que
nenhum Icatiano se rendeu ao Império, porque no último dia não tinha
nenhum Icatiano na capital.
- Vocês deixaram os Samurais para trás, defendendo o lar de vocês.
- Os samurais eram doidos! A gente falou
que a terra não era importante, e sim a liberdade, mas eles ficaram!
Diziam que o Império não matou todo mundo porque ficaram com pena!
Tiverma de amarrar os prisioneiros enquanto tratavam! Perder não era
opção! Mandou todos para uma prisão que era mais um palácio e mesmo
assim um monte cometeu suicídio! Nem a extradição era aceitável para
aquele povinho doido! Sabe, o Império preparou uma enorme armada para
atacar o reino deles, mas teve um terremoto, maremoto, algo grande que
matou muita gente no sul, mas foi tão cabuloso que decidiram deixar para
lá! É muito complicado lidar com gente assim. E o Império parou a
expansão poucos anos depois, então…
- E o que se fez dos Icatianos?
- Bem… Aí é que a história fica triste.
Perdemos nosso lar e nos espalhamos. Mas o maior acampamento, do
herdeiro do rei recebeu a visita da Kassdra, dizendo “eu falei para não
abandonar a cidade! Falei! Vocês ouviram? Não! Os Wenjakas quem ficou
até o fim e nem um piolho Icatiano tinha na cidade quando caiu. As
forças do outro lado não gostaram! ‘Tamos tudo amaldiçoado! Nunca mais
vamos erguer uma cidade sequer! Têje de praga!” E é aí que eu me
revolto: A Velha nunca acertava as estações de colheita, mas as
maldições caem que é uma beleza. Para fazer maldade as magias funcionam
mesmo.
- Vocês se acham amaldiçoados então?
- Nunca mais um Icatiano levantou uma
construção mais complexa que uma tenda. Ficamos algum tempo na cidade
dos outros – veja bem, dos outros – e não aguentamos. Dá uma comichão
nos pés e a gente precisa andar. Precisa sair. Se algum cigano, como eu,
está sozinho, aí talvez consiga ficar numa parada algum tempo… Mas se
chegar mais dois, aí o desespero de viajar aumenta. E como vivemos em
caravanas nômades, é aí que não paramos em casa de ninguém. Então, os
mal-elementos da comunidade – toda comunidade tem – se destacam, e
ganhamos fama de ladrões. E como nossas leis não correspondem sempre com
as leis de onde paramos, dá problema com os Gajôs. Mesmo se quiséssemos
forçar a barra para ficar, os donos das cidades forçam a barra para nós
sair. Daí, inevitavelmente mescla-se o sangue, e vamos diminuindo o
número. Icatianos… Estão em extinção.
As últimas frases daquele tristonho homem
traziam muita sonolência. Juan respeita aquele contador de história
triste e penoso, e prefere se afastar. Icrino balburcia as últimas
frases para ninguém, e enfim cai no sono induzido pela cerveja anã.
…
Na manhã seguinte, Icrino não estava mais
com os aventureiros. Bem como alguns de seus pertences. E sinceramente,
Lhentagar não deveria ser por aquelas paragens.
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